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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Os papões

1. Vejo muita gente alarmando o auditório com os perigos do "retorno do fascismo". Os sinos a rebate funcionam exactamente como as advertências da visita do "papão" ou do "homem do saco", presentes no imaginário infantil. Os zeladores desses perigos inomináveis são, quase sempre, pontífices do regime que outorgaram a si próprios uma proeminência moral muitas vezes baseada na lenda e na ocultação.

Todavia, a questão não é despropositada. Bem pelo contrário. Nas sociedades do espectáculo difuso (Debord) em que vivemos, o (neo)fascismo dispensa o Estado totalitário, mas não o totalitarismo. Passa bem sem a censura, mas não sem o medo. Não pretende restaurar uma ordem pré-iluminista, mas uma utopia eugénica, onde as diferenças são subtilmente anuladas. É-lhe indiferente a submissão, mas não floresce sem o culto narcísico. Não nega as liberdades, mas administrativiza-as. Neste cenário hedonista, o Poder decide que somos todos iguais. Pois a ânsia do consumo é uma ânsia de obediência a uma ordem não enunciada. Pois nunca a diferença foi tão aterradora como neste período de tolerância. O Estado sabe tudo acerca dos cidadãos, dado que é no seu interesse que o faz. Dá-lhes bons conselhos, protege-os do risco, da tentação, do vício. Sufoca-os com o abraço do urso. 
O preço desta vigilância assistencial é o controlo. As investidas fiscalizadoras da ASAE, embora compreensíveis à luz do combate à contrafacção e em prol da saúde pública, são muitas vezes provocadoras e humilhantes para os visados. O espectáculo hollywoodesco das máscaras e das correrias tem fins de prevenção geral para toda a nação. É o papão que faz tremer de medo um país pré-higiénico, pré-normalizado. Tudo isto para acabar com a chamada economia paralela. Aquela que não gera tributação. Refiro-me à rede de pequenos serviços, muitas vezes familiar, à produção de subsistência, ao pequeno comércio de rua, muitas vezes ligado às tradições culturais, festivas e gastronómicas. Tal como a obra de Kafka demonstra, o verdadeiro prazer do esbirro ou do polícia está em incomodar os outros por razões fúteis. Não por motivos legítimos, palpáveis, reconhecíveis. É precisamente a gratuitidade da ameaça, o tom aleatório do medo, o que torna o totalitarismo tão absurdo quanto real.

2. W. H. Auden, poeta e escritor inglês, viveu na primeira metade do séc. XX. Antes da ascensão do nazi-fascismo, integrava os círculos fabianos e o grupo progressista de Bloomsbury, onde pontuava Virgínia Woolf, H. G. Wells e Bernard Shaw. Desiludido com a traição de Munique, o apaziguamento que se lhe seguiu e o Pacto de não agressão Hitler-Estaline, foi para os Estados Unidos, logo no início da Guerra. Onde escreveu um extraordinário e profético poema, deveras apropriado para os dias que correm:

Rostos ao longo do bar/Agarram-se ao dia mediano;/As luzes nunca deverão apagar-se,/A música deverá sempre tocar, (...) Com medo que descubramos onde estamos,/Perdidos numa floresta assombrada,/Crianças com medo da noite,/Que nunca foram boas ou felizes.

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